segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Sereia
Não era dia, nem noite. A visão do mundo já não era nítida, era o momento em que temos a chance de encontrar o sobrenatural. E eu o encontrei.
Ela nadou até mim, acenou, quando ainda estava no meio do oceano, e sorriu. Quando chegou a praia, subiu em uma pedra e o sol de fim de tarde refletiu em suas escamas escuras um brilho multicolor, furta cor. Parecia ofegante, como se tivesse vindo depressa demais.
Sentados nas rochas falamos de tudo. Contei-lhes sobre a terra e ela me falou dos mares. Deitamos na areia e contemplamos a lua cheia em silêncio. O céu era o mesmo, visto da terra ou do mar, e isso nos fazia sentir iguais.
Quando eu contava alguma piada infame sobre sua condição não totalmente humana, ela fazia cara de brava e jurava me cantar uma canção. Me enfeitiçar, me levar para o fundo do mar e tirar-me o último suspiro com um beijo. Eu juro que às vezes queria, eu juro que fazia piadas até demais.
Mas ela nunca me cantou nada, ela nunca me tocou com seus lábios de veneno. Suas mãos sempre visitavam minha pele seca e as minhas passeavam pela sua hidratada e com aspecto sempre molhado e fresco.
Seus dedos sempre entrelaçavam nos meus durante a despedida, nossos olhos se encontravam e, depois, eu a via sumir na imensidão azul, antes que o sol nascesse novamente. Eu sempre voltava tão cansado para casa, que não sabia o que era sonho e o que era real. Então, eu esperava mais uma lua cheia, mais uma vez o momento de vê-la. Aquele momento quando não é dia, mas também não é noite.

Texto dedicado a uma sereia sem nome, sem adeus, sem saber se é real ou não. E que, ao me conceder uma fração de seu tempo, deixou em mim a marca de seus olhos. Feitiço mais cruel que seu canto, veneno mais mortal que seu beijo.
|@eufragmentos

sábado, 25 de agosto de 2018

[Resenha]- O Monstro Atrás da Porta



[SEM SPOILER]

                O livro acompanha dois detetives que investigam alguns assassinatos cruéis que ocorreram em Recife. É dividido em quatro partes eu, particularmente, fiquei grudada nas duas últimas partes e só larguei quando terminei. A história é envolvente, tem um ritmo bom e mais corrido no final, o que te faz perder o fôlego com tanta informação.
             Rodrigo, um detetive experiente que investiga os casos, é um personagem inicialmente desinteressante, mas vai te pegando com os detalhes de sua história. É pesado ler o que ele tem a dizer depois dos primeiros capítulos. Já Alexandre, o detetive júnior assistente de Rodrigo, se mostra um jovem inteligente e que adora cultura pop (vou confessar que as vezes chega a incomodar essas características nele).
           Talvez por já ter acompanhado várias histórias com a temática, eu já imaginava os acontecimentos por trás dos crimes, mas meu queixo caiu com a forma que tudo se resolveu, adorei a forma como a parte final do livro foi desenvolvida. Eu vi alguns problemas em pontos específicos da história, mas vou deixar isso para a parte com spoiler para não acabar falando demais e estragando a experiência para alguém.



[COM SPOILER]



                 Uma das primeiras coisas que me deixou feliz foi o fato da história se passar no Brasil, apesar de eu não ser ambientada com as paisagens de Recife, os detalhes sobre ruas e tudo mais torna tudo mais real e chocante. Porém as várias explicações sobre costumes do país e a frequência em que o nome dele é falado me incomodou um pouco. Às vezes eu tinha a impressão de que haviam notas de rodapé explicativas no meio do texto.
                   Os capítulos alternam sobre o ponto de vista dos dois detetives, mas não é necessário ler o nome do personagem que narra o capitulo. As narrativas são bem diferentes quando feitos por Rodrigo ou por Alexandre, principalmente no início do livro, o que ajuda a fixar na cabeça a personalidade de cada um.  Nessa parte inicial acho que o que me deixou receiosa foi a forma como Rodrigo descreve ao parceiro e si mesmo no primeiro capítulo, me pareceu uma lista pronta de características. Rodrigo dizer que seu parceiro parece um modelo e que ele é um coroa alto e malhado, isso deixou um ar prepotente e desagradável a leitura (mesmo ele sendo talhado como um personagem egocêntrico achei forçado, até para ele).
              O discurso pro-privatização de Alexandre, em um de seus primeiros capítulos, me incomodou bastante.Considerando que as questões políticas estão sendo mais discutidas atualmente, pode ter sido uma tentativa de deixar tudo mais real, mas ao meu ver foi um pouco demais. Não foi um trecho de uma conversa qualquer sobre política que foi interrompida por uma notícia chocante, foi um discurso político no meio do capitulo de apresentação do personagem, entre um parágrafo que fala de um crime horrível que ocorreu no ano anterior e outro em que fala da excitação de um jovem que trabalha com um cara que admira.
               Outra coisa que incomoda é que quase todos personagens são descritos como bonitos, magros e ricos.
                Muitos dos pensamentos deveriam ser transformados em diálogos, o livro parece ser um antro de personagens introspectivos que pensam muito e falam pouco. Dois homens fazem uma viagem de carro, um deles reclama dos buracos de estradas (que não é a que eles estão agora e de como a política influencia nisso, ao invés de conversarem com o outro sobre isso)
                As cenas tristes, são bem tristes e reais. Rodrigo é um personagem sério, nada feliz e com dificuldade de expressar sentimentos. Chega a ser confuso ler ele tentando ser gentil. Alexandre é o cara que explica a história. Isso as vezes funciona muito bem, outras não. Mas não acho que seja um problema.
               Rodrigo é muito sexual. Todo dia termina com ele se masturbando, todo capitulo envolve sexo. Ele parece um jovem de 16 anos que fantasia sempre com isso. (Menos Rodrigo, seus mais de 40 anos não serviram para você aprender que sexo não é tudo isso?).

Fiquei muito chocada com o capitulo do Natal. A-P-E-N-A-S!

               Apesar de eu achar que precisaria ter mais dialogo, os que tem são em sua maioria muito bons. Alguns capítulos são tão bem fechadinhos que funcionariam como um conto ou crônica, se estivessem sozinhos. Eu gosto da profundidade dada a Rodrigo. É tão detalhando que chega a ser incomodo as vezes. Me senti intima dele, talvez até demais.
             Enfim, o livro não tem medo de chocar. Tem temas fortes, cenas fortes e, até mesmo, pensamentos fortes. E eu seria louca se não o recomendasse.

domingo, 29 de julho de 2018

Voando para um Sonho


            Capitão Ícaro¹ estava pronto para mais um voo, dessa vez sobrevoaria a cidade maravilhosa, acompanhado de seu inseparável amigo Ben.  Tirou, pela centésima vez, a foto de Eleonor² do bolso e sorriu para ela.
—Ela é linda, não é mesmo Ben? — Disse desejando estar nos braços da jovem. — É a mulher mais bonita que conheço e, certamente a que mais amo.  Adoro seu carinho e dedicação. Adoro o jeito que sempre me recebe com um delicioso bolo de cenoura e um abraço.
            Ao notar que o amigo mostrava sua lustrosa fileira de dentes, também riu do seu próprio sentimentalismo e guardou a fotografia, amassando-a no bolso de trás. Deu mais uma olhada nas pás do aeromotor e, por fim, preparou-se para o voo.  Quando Ben e Ícaro já estavam acomodados, ouviu-se o barulho do motor. O ruído que aumentava mais e mais era como música para os ouvidos do piloto.
—Tudo certo ai, amigão? — Perguntou ele a Ben, que apenas balançou a cabeça em sinal de confirmação. Ben era um baixinho mal encarado e de poucas palavras. Muitos o achavam antipático, outros pensavam que ele era mudo, tamanha a raridade que o silencioso parceiro emitia ruídos.
            Após a confirmação de seu amigo fiel, Ícaro sabia que estava na hora.  Mesmo depois de dezenas de voos ele nunca se cansou dessa parte, era sua favorita. Sentia que o avião estava indo cada vez mais rápido. A vibração do contado com o solo percorrendo todo seu corpo. O som ensurdecedor do vento. E então, em menos de um segundo, tudo parava e só se ouvia novamente o barulho do motor. Levantaram voo.
            Não havia mais chão, eles subiam e subiam. Ícaro podia sentir a liberdade tocar sua face. Era como se o mundo parasse, só para que ele pudesse sentir aquilo mais uma vez. Abriu os olhos, fazia poucos segundos que os havia fechado, mas pareciam minutos. Talvez o tempo também parasse para sentir a liberdade. Viu a cidade lá embaixo. Um mar inteiro dela. As curvas doces do pão de açúcar ao fundo. O Cristo saudoso, sempre a espera de um abraço, a frente. Cumprimentou o gigante de pedra-sabão e desejou ser grande o suficiente pra aceitar o abraço que era oferecido a tanto tempo. Ben parecia inquieto, ambos sentiam que havia algo errado.
—Você está ouvindo isso, garoto? — Perguntou. — Parece que estamos encrencados.
•••
­ — Que bagunça é essa, Ícaro? — Resmungou a velha senhora que entrava pela porta da frente carregada de sacolas.
— Calma vovó Elê! Eu já estava arrumando. — Disse levantando-se bruscamente, ele estava realmente encrencado.
— Tira esse cachorro de cima das minhas almofadas, ele vai encher tudo de pelos!
— Sim, senhora! — A essa altura o velho Pug já saia de fininho percebendo a bronca e o garoto recolhia as almofadas do chão.
— Covarde. — Cochichou o garoto sobre o cãozinho, enquanto ele tentava fugir dos olhos atentos da senhora.
— Eu achei o chá que combinará perfeitamente com o bolo. Ande, vá lavar as mãos. Vou te servir uma grande fatia, bem do jeito que você gosta.
            O garoto desligou o ventilador, que estava a frente da pilha de almofadas, fazendo suas hélices pararem. Recolheu os quadros da avó, antes escorados em cadeiras, que formavam a paisagem vista das janelas de seu avião de almofadas. Os velhos quadros eram lembranças da viajem que sua avó fez ao Rio quando jovem, coloco-os cuidadosamente de volta em seus lugares. Deu mais uma bela olhada no Cristo estampado na tela e saiu para lavar as mãos. Antes que chegasse ao banheiro, voltou ao cômodo de visitas e tirou a foto amarrotada do bolso de trás. Colocou-a novamente no porta-retratos marrom, em cima da estante e, guiado pelo inebriante cheiro de bolo de cenoura e calda de chocolate, correu até a cozinha para receber um longo abraço, que tanto espera no fim de cada aventura.

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¹ Na mitologia grega Ícaro, filho de Delano, voou com assas feitas de cera de abelha e penas de gaivota. Porém, por sonhar alto demais, voou em direção Sol. Isso fez a cera de abelha que sustentava suas asas derreter, derrubando-o ao mar.
² Eleonor advém do grego Heléne que significa “tocha”, que por sua vez, veio do termo hélê que quer dizer “raio de sol”.